Era uma vez um tolo...  

Posted by Harijan D

Arn'hen Dumbaut era seu nome. Um sujeito alto, de porte físico que exuberava saúde, e aliado ao seu ímpeto implacável, era um legítimo realizador de façanhas inacreditavelmente estúpidas.

Não fazia nada demais da vida. Acordava todos os dias depois do nascer do sol, ficava assistindo a programação estúpida que passava naquela magivisão, ao som daquela chuva incessante e mórbida caindo sem parar além de sua janela, como todo habitante de sua cidade. Completara vinte e poucos anos há poucos dias, mas não deu festa nem comemorou, pois não tinha amigos. Muitos de seus vizinhos estranhavam seu comportamento apático, mais ainda, o dos seus pais, por deixarem um filho solto na vida. A verdade era que eles tentaram de tudo para fazer do jovem Arn'hen, um grande artesão das letras, na intenção de manter o legado dos Dumbaut, escrivães renomados de Lumina.

Não terminara seus anos de ensinamentos básicos na Academia das Letras Comuns, pois fora expulso, acusado por diversas arruaças, causadas em sua maioria, por não pensar muito antes de agir, ou falar. Fora muitas vezes detido em castigo por respostas inapropriadas aos mestres, bem como maus tratos aos colegas. Estes, que jamais ousaram semear amizades com Arn'hen. Os poucos que tentaram, desistiram da idéia após a primeira troca insuportável de palavras. Certa vez, fora obrigado a lavar louça durante todo um ano, de todos os alunos, ao ter, por extravagância, comido secretamente, antes, durante, e diversas vezes após o horário de almoço. Mas, descoberto foi, por quase atear fogo na academia inteira, quando fora esquentar a comida e esquecera seus livros do lado do forno ligado, o que provocou uma imensa labareda e a perda de cinco meses de mantimentos.

Tudo isso chateava Arn'hen, mas de uma coisa ele gostava, e muito... Atear fogo. Não fora por acaso que os livros, queimando, passaram misteriosamente seu calor através de toda a cozinha, incinerando cada elemento que dali ateasse fogo.
Todos sabem o quanto o fogo é encantador, com sua dança inconstante de ritmo frenético, imprevisível e hipnotizante. No entanto, alguns dizem nunca terem visto alguém com tanta voracidade pelo fogo e sua proliferação, como Arn'hen. Somado ao seu caráter estranho e comportamento imprevisívelmente explosivo, ganhava assim alcunhas que muitas vezes nem obtinha conhecimento. Algumas delas eram: estúpido faisquento, idiota das chamas, cabeça de explosão, cérebro torrado, aquele-que-não-se-deve-emprestar-isqueiros-lâmpadas-ou-quaisquer-coisa-que-ateie-fogo, entre outros...

Mas algo na vida de Arn'hen ajudava-o, e de alguma forma, acreditava em sua capacidade, que evidentemente ninguém percebera. Era seu irmão gêmeo, Lud'hen Dumbaut. Este, apesar da aparência idêntica, era muito diferente do irmão. Eloqüente, pensador, escrivão de altíssima categoria e habilidade, e com seu modo descontraído, era um verdadeiro ímã de amigos e admiradores. Em pouco tempo, logo após se formar na mesma academia que seu irmão fora expulso, passou no exame e foi admitido na Academia de Estudo das Técnicas Mágicas. Em menos de dois anos, já comportara dentro de sua mente conhecimentos mil sobre diversas magias, assim como toda teoria e história a seu respeito. Absorvera tudo que a academia dispunha, de livros secretos, até truques pessoais de professores veteranos da Casa. Era então, um renomado mago, conhecido em diversas partes do mundo, não apenas na Capital dos Homens.

E de algum modo, Arn'hen não sentia inveja, nem nunca havia sentido, ao contrário, orgulhava-se sinceramente das vitórias de seu congênere. Em certos momentos, principalmente quando outros bem diziam a Lud'hen, e ao nome dos Dumbaut, sentia como se fosse a ele dirigido os elogios, o que reconfortava-o plenamente. E embora soubesse, inconscientemente, que os comentários aos méritos do irmão agradavam-no e muito, e que para ter o mesmo para si precisaria empenhar-se igualmente, cansava-se no exato instante que imaginava os esforços necessários para tal.
Sua paixão pelo fogo consumia-o, assim como sua vontade de queimar a tudo.
Seu irmão tentara por diversas vezes incitar-lhe a curiosidade maior, o desejo pelo saber. Mas era inútil. Depois de ter sido expulso da academia, Arn'hen não agüentava ler uma página sequer de qualquer livro.

Lud'hen voltara de uma difícil jornada para além Norte de Lumina, com objetivos não revelado à seu irmão e família. A primeira coisa que fez ao chegar à cidade-nunca-seca, foi procurar o irmão e saber o que fazia da sua existência.
Encontrou Arn'hen em uma Guilda de Construtores, sendo um operador de forno para tijolos de lama-ferro. Fazia assim, tijolos noite e dia. Decidira morar na sede da Guilda, e mesmo não tendo a atenção de outros funcionários, que já o tratavam com o respeito mínimo pela camaradagem de serviço, passava mais tempo no forno do que longe dele.

O reencontro não foi muito animador. Arn'hen transbordava indiferença a tudo, até mesmo ao seu irmão, embora nesse caso fosse apenas externamente. De fato admirava-o muito. Mas havia passado seu aniversário sozinho, e pouco havia feito, senão ficado um pouco alegre, após ter tomado uma dose daquelas bebidas, que volta e meia usurpava da garrafa de um companheiro de trabalho, de teor alcoólico forte e gosto amargo.
O irmão gênio perguntou ao tolo:
- Não te entendo... Sei de seu desinteresse para os caminhos de uma vida gratificante. Mas estar aqui, assando tijolos... Acha isto realmente digno?
- Apesar de viajar tanto, - replicou Arn'hen, enquanto coçava a cabeça e já se preparando para inserir uma nova leva de tijolos ao fogo - parece que te faltam miolos pra completar a Grande Sabedoria. Estou feliz aqui, trabalhando no forno.
Lud'hen mantinha um semblante rígido, como que, nas muitas raras ocasiões, transparecendo um ar desaprovador ao local onde o irmão acabara, ou melhor, escolhera estar, e voltou a questioná-lo:
- Não tens vontade de estudar? De conhecer mais sobre a origem das coisas, o porquê disso tudo? - falou fazendo um gesto circular com ambas as mãos.
- Fui expulso da academia. Não quero mais ver a cara daquela gentinha nunca mais. Quanto mais estudar.
- Mas lendo você pode viajar quilômetros, eternidades, sem sair do lugar.
- Ler é um estorvo, desgasta muito...
- Virar páginas cansa-te? - indignou-se o gênio, ao que provavelmente se indignaria mais, caso soubesse que na cabeça do irmão pairavam pensamentos destas faladas páginas, porém queimando uma a uma - E viajar? Conhecer novos lugares, novas pessoas? Não te interessas?
- Nem um pouco. Não gosto das pessoas, sabe disso.
- E monstros? Caçar, lutar, ganhar conhecimento na área militar, o que acha?
- Arriscar minha vida? Ou para ficar ouvindo ordens? Ser tratado como cão? Menos ainda...
- E meditar? Por que não procura conhecimentos ocultos através da paz de espírito?
- Nesse caso vou perder tempo sem nem ao menos produzir nada.
- Fazes o mesmo estando aqui.
- Pessoas precisam de lugar para morar. Eu ajudo fazendo tijolos, para futuramente serem usados. Não perco meu tempo à toa.
- Tudo bem, apenas quero te mostrar uma coisa que trouxe da minha última viagem. Mas preste atenção no que vou dizer, não ouse tocar nele quando mostrar-lhe, as conseqüências podem ser desastrosas.
Lud'hen então puxou de um dos bolsos, um pequeno saco aveludado púrpura. Antes de revelar seu conteúdo, fechou os olhos, em seguida começou a massagear suavemente. Ficou por alguns minutos assim, até que Arn'hen, já entediado, voltava-se para a enorme pá de pegar tijolos, quando Lud'hen interrompeu-lhe, dizendo para não tirar os olhos dele. Assim que parou, procurou algum lugar agitando a cabeça, e dirigindo-se para uma bancada sem tijolos, depositou o saco com muita cautela, puxando-o com a precisão de um cirurgião realizando uma operação delicada. Era possível apenas ouvir o som do fogo crepitando, pois nesta hora, apenas os dois se encontravam no local. O silêncio profundo da ocasião desconfortava Arn'hen de tal modo, que já mais do que entediado, aspirou com força, sonorizando o ato propositadamente. Tal quebra na concentração admirável em que Lud'hen se encontrava, fê-lo antecipar seu movimento, puxando o saco rápida e desastradamente. Ao sair, o conteúdo iluminou todo o prédio em que estavam, sendo possível, para quem estivesse nas ruas e aos redores, ver luzes das janelas e frestras. Tal claridade no ambiente subitamente desapareceu. Ao abrir os olhos, Arn'hen viu Lud'hen contorcendo-se em movimentos desconexos e estranhos. Perplexo, chegou perto para observar, e contemplou a mais bela visão de sua vida. As mãos de Lud'hen desenhavam uma forma mágica esférica estranha no ar, em seu centro havia uma criatura pequena de lava incandescente, em posição fetal, muito similar à uma estátua de fogo. A criatura se debatia, se retorcendo num aparente cárcere sofrido. Lud'hen, que agora estava banhado em suor, contraia seus músculos enquanto recitava palavras alheias ao entendimento de Arn'hen. A situação não parecia boa, mas Arn'hen não conseguia de forma alguma tirar seus olhos da criatura. Estava encantado. Tal encanto fora transformado em pena pelo pobre ser, e sem entender o porquê da situação, pediu para o irmão parar. Não obteve resposta, apenas um sonoro "SILÊNCIO!". Nunca recebera uma reprimenda do irmão gênio, e ficou magoado por isso. A mágoa, somado ao sentimento de ver a criatura aprisionada, rapidamente transformou-se em revolta. Observou novamente a criaturinha, que agora emitia um gemido baixo, e empurrou o irmão. A forma mágica se partiu, e desvaneceu. A criatura de fogo, descontorceu-se e esticou-se, emitindo neste mesmo instante, uma gigantesca explosão de fogo.

A explosão destruíra todo aquele edifício, bem como os outros edifícios adjacentes, criando uma enorme cratera naquele platô. Os Domadores do Fogo já se encaminhavam para o local. Não houveram tantos mortos, apenas algumas dúzias, e comparado com outros incidentes desta cidade, não era um acontecimento tão grande, portanto, não seria nada mais que uma breve passagem no jornal da manhã seguinte daquele distrito.
Em pouco tempo, cerca de mais de meio de ano, outro edifício já ocupava o local, desta vez, era um edifício residencial, erguido por um Burguês que desejava uma moradia adequada para a família de seus empregados.

No dia do ocorrido desastre, muitos ouviram o som daquela explosão, poucos a viram, menos ainda entenderam-na, e apenas um homem permaneceu vivo daquele incidente. Arn'hen Dumbaut era seu nome. Mentes comuns duvidariam do extraordinário fato ocorrido. No micro instante daquela explosão, ao ter seu corpo desintegrando naquele milésimo de segundo, Lud'hen pôde ver, em espírito, aquilo que demorou muito para conseguir impedir, ver o gênio do fogo em total liberdade. Mais perplexo ficou, ao procurar pelo irmão, e notar que este, a vida em nada tinha perdido, talvez até estivesse melhor. E realmente estava. Arn'hen nem fazia idéia do significado da sensação do momento, apenas que havia se tornado o um com o fogo. E foi desta situação, que o inesperado aconteceu, o gênio falou:
- Tu amas o fogo - olhando para Arn'hen - mais do que pude ver em outro ser qualquer. Por simpatia tal, que me agrada e muito, viverás. Vemos-nos por aí!
Ao terminar de falar, o gênio distorceu sua forma rodopiando, desvanecendo para todos os lados, fundindo-se com a explosão.

- QUE?! - gritou Lud'hen, em espírito. - Isso só pode ser brincadeira! E das piores!
Arn'hen, que agora saía daquele torpor mágico que se encontrava, percebeu então que seu irmão sumira, bem como aquele prédio onde estavam. A chuva não estava forte, mas caía constantemente, encharcando-o antes mesmo de voltar à si. Começou a ficar sem ar, entrara em estado de choque, pois percebera a besteira que fizera. Não ouviu as palavras do irmão, e por isso, este havia desaparecido provavelmente morto. Saiu dos destroços sem saber para onde ia. Começou então a chorar, sem saber o que dizer para seus pais quando os visse.

- Pode parar de chorar!
Da frase que ecoou em sua cabeça, acreditou estar louco, ouvindo vozes do além. Vozes iguais a do seu irmão.
- Seu desgraçado! Incopentente! Desafortunado e desaventurado seja! Me fez perder tudo aquilo que adquiri, e pior, tudo aquilo que ainda tinha de fazer! - gritou a voz de seu irmão.
Arn'hen Estava mais confuso do que nunca, chorava e soluçava palavras de perdão e arrependimento.
- Não adianta pedir desculpas depois de ter feito a merda! - bradou o espírito de Lud'hen. - Agora, escute bem, vais estudar tudo que estudei e viajar tudo que viajei. Vais ser reconhecido no mundo inteiro como o meu sucessor. O irmão que nunca apareceu, mas que vai fazer muito mais do que fui capaz. E se pensar em desistir, tornarei sua vida um pesadelo! Esforce-se ao máximo, que daqui por diante, pensarás por dois!

This entry was posted on outubro 28, 2008 at terça-feira, outubro 28, 2008 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

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