Má digestão  

Posted by Harijan D

O clima estava ameno, a luz era tão branda que dificilmente olhos normais enxergariam além do palmo. O chão estava repleto de grama e outras pequenas plantas rasteiras. Seus passos, pesados e desregrados, guiavam-no sem direção. Já fazia algum tempo, seu estômago permanecia repleto apenas de ar, sendo preenchido periodicamente por porções de terra úmida, com alguns insetos e lascas de árvores, porém, nada disso convém com sua dieta imprescindívelmente carnívora.

Vagou por algum tempo sem esperanças. Já havia degustado todos os animais menores que encontrara. A fome era tanta que os comera assim que os capturara, sem nem sequer pensar em guardar para um futuro cozido. Seus sentidos desvaneciam negligenciando-o, pois carenciava energia. Seu olfato não sentia nada, e a vista, que já não era boa, por diversas vezes iludia-o, sendo as piores destas em vezes que vaga-lumes acabavam por voar em duplas, simulando pares de olhos brilhantes, quase desgastando-se inutilmente, pois sempre pensava, antes de mais nada, com as covas nasais.

A floresta permanecia quieta, brincando com seu resquício de sanidade. Andou tanto sem prestar atenção por onde ia que, sem perceber, foi surpreendido por raios solares. Estes perfuravam as copas ondulantes das gigantescas árvores daquela floresta. Na encosta de uma raiz imensa, reenconstou em um tronco que ali jazia, evitando assim, aquela incômoda claridade. Baixou a cabeça e deglutiu um pouco da lama sob seus pés. No ímpeto de driblar um pouco da sua fome, não percebeu a imensa pedra que trazia escondida no bolo de terra, e engasgou-se. Tossiu duas vezes, e na terceira retornou-a à boca com o auxílio de uma pancada na altura do estômago, triturando-a com seus dentes, engolindo seus farelos. Urrou de raiva quando seu estômago contraiu dolorosamente, e no mesmo momento, percebeu! Saltou em desespero, sendo alvejado pelos raios solares, mal sabendo para onde ia, apenas guiado pelo nariz. Derrubou algumas árvores menores que ousavam interpor seu caminho, saltou e aterrizou em um elevado na esquina de um rio.

O cheiro estava forte, tão forte era, que seu estado físico mudara da água para o vinho em segundos. De olhos inquietos perscrutando cada nuance do ambiente, dava a cada virada brusca de sua cabeça uma grande e furiosa tragada de ar, buscando sentir o cheiro com clareza, assim como a direção do dono.
A luz refletida na água ofuscava seus cegos olhos, que não foram suficientemente rápidos em perceber aqueles dois chicotes, voando rapidamente, proveniente de direções opostas mas com o mesmo alvo. A velocidade deles era tanta, que cortavam as folhas de outono esvoaçantes, podadas pelo tempo antes mesmo destas chegarem ao solo. Em posição transversal uma à outra, acertaram-lhe em cheio. Um chicote abateu na altura dos joelhos, o outro preenchia a coluna enquanto lançava-o rodopiando no ar, na direção da outra margem do rio.



Rolou algumas distâncias, levando consigo rochas, plantas e alguns animais menores, que por infelicidade, habitavam ali.
Antes de levantar a cabeça, ouviu um assobio do vento, acompanhado de um cheiro deleitoso, vinda da fronte. Ergueu a cabeça e apontou o nariz para frente, e numa aspirada forte de ar, sugou aquele ser pequeno. Tanta foi a potência daquela sucção, que elevou o infeliz atacante do solo, fazendo a certeza de um perfeito reforço alimentar voar em sua direção. O choque foi intenso. Sua palma havia preenchido toda a parte lateral, das costelas às pernas do corpo daquele pequeno ser, que nem mesmo teve tempo de reagir, fora engolido. Sentiu-o lutar, então removeu todo ar de seus pulmões, e inspirou ao máximo que pôde, para depois socar suas próprias costelas, que de tanta violência romperam a parede do estômago, cessando os movimentos de luta no seu interior, bufando todo ar em seguida. O alívio era incomensurável, sendo evidenciado com o som gutural do ar, acompanhado de diversos outros detritos, no colossal arroto de alguns minutos.

Alimentado, e de sentidos reaguçados, pulou agilmente, esquivando-se de uma chuva de folhas pontiagudas que viera em sua direção. Agarrou-se em um espesso galho, observando o estrago daquele ataque ao local onde estivera antes, e se não fosse pelo aperitivo revitalizando seu olfato, dificilmente teria detectado o outro ser logo acima de sua cabeça, no galho onde se agarrava. Rapidamente agarrou a perna deste, soltando-se em seguida, caindo ao solo à toda velocidade, e com incomensurável brutalidade, antes mesmo de pisar ao chão, arremeteu a pobre criatura ao solo. Colocou o pequeno ser abatido e desacordado dentro do saco velho que trazia consigo, amarrado ao cinto improvisado de cipós e panos velhos. Mal teve tempo de fechar o saco, e suas narinas converteram, cada buraco para um lado, apontando os inimigos que agora corriam em sua direção, cada um proveniente de direções diferentes, na tentativa de flanqueá-lo. Sorriu, afundou o pé esquerdo no chão, jogando lama no rosto de um que vinha furiosamente à frente. Este, parou abruptamente sua investida, tão grande fora sua surpresa pela finta, que reverberava ao mesmo tempo em que se desvencilhava da sujeira que o cegara. Ao ver que seu truque funcionou, emitiu um som estranho, parecido com uma risada desajeitada de criança, e sem olhar, jogou o saco na direção do outro atacante, que mudou de postura rapidamente para agarrar o seu companheiro ensacado, projetado ao seu peito. Sem deixar o primeiro distraído recompor-se, caiu sobre ele seu punho esquerdo cerrado, derrubando-o ao chão. Sentiu sua barriga remexer, achou que o lanchinho não fora digerido direito, mas, ao virar-se, percebeu que havia tomado uma pancada do segundo, que já recuara um semi passo para desferir outro golpe, ficando à frente do saco jazido no solo. Este, foi lento na tentativa, ou não causara suficiente impacto com o primeiro golpe, pois recebeu um chute que o arremessou longe.

Ambos estavam desacordados, e agora, faziam companhia ao primeiro capturado. Sentiu a barriga roncar, a fome ressurgiu à tona. Desde sempre, graças aos seus dotes nasais, utilizava o olfato como o principal sentido, detectando inclusive, o gosto das coisas antes mesmo de prová-las. O cheiro daquele que agora o fazia contorcer-se, não parecia ruim na hora, ao contrário, o cheiro do quebra-jejum era extremamente agradável, como o de uma fruta de polpa voluptuosa e carnuda, exuberante em sabor. O aperitivo não era dos mais gordos, cessando mais sua ânsia pela satisfação, do que a fome propriamente. Mas a fome era tamanha, que ainda necessitava de mais. Aquele aperitivo serviu-lhe bem, pois poderia ter sucumbido ao súbito ataque daqueles seres saborosamente detestáveis.

Embora, menos que antes, ainda faminto, retornava feliz por onde percorrera. Agora, sua semi-lucidez permitia-o perceber diversas plantas, fungos, insetos e outras maravilhas naturais que, como tempêro, complementavam a sua tão apreciada e divertida culinária.
Pensava em quais pratos poderia, com o achado do dia, dar-se ao luxo de fazer.
Talvez pernas grelhadas, ou tripas ao molho de cogumelos-cansados. Este era bom, mas dava um sono terrível, possivelmente fazendo-o acordar com mais fome que estivera antes de comer, de tantos dias que poderia passar dormindo. Claro que isso variaria de acordo com a proporção de cogumelos utilizados na receita, mas ele se conhecia o suficiente para saber que não era uma boa idéia, dado o infeliz momento de escassez.
Pensou em mais alguns pratos, práticos, de rápido preparo, como um bom e velho flambado, ou um grande ensopado, com alguns leguminosos revoltados, sapos vermelhos para dar cor, e ervas diabólicas, seu condimento preferido pela ardência!
Fez-se ao longo do caminho, pegando o que surgia e depositando tudo em um saco menor, deixando então para decidir no momento, qual prato seria o do dia.

Finalmente retornou à caverna. Esta, fora lapidada pelo tempo, graças às erosões numa colina, fazendo com que algumas árvores despencassem, entortassem, e formassem aquele corredor de raízes, agora podadas rudimentarmente por mãos grosseiras. Uma porta guardava aquela fenda natural. Tão pesada era, que precisou encobrir o chão com diversas rochas antes de inseri-la, impossibilitando aquele colosso de pedras e troncos, que para ele parecia até um arbusto, afundar no chão macio de terra molhada.

Se o ambiente externo onde se encontrava a caverna, já era escuro, dentro era como o lar das mais nefastas criaturas, e realmente era, mas só de uma. Adentrou-a, sem nem ao menos fechar sua porta, pois sua cabeça estava à mil, assim como sua fome. No escuro, mordeu o ar com força algumas vezes, até que criou uma faísca, acendendo uma tocha velha enfiada pela metade na parede, iluminando precariamente aquele alto, porém apertado aposento.
Depositou o pesado saco no chão. Pegou um grande caldeirão, cheio de restos das refeições anteriores. Juntou alguns troncos e madeiras podres, reservados especialmente para o preparo de suas sestas, e com a tocha da parede, fez uma larga e circular fogueira. Pegou o caldeirão e dirigiu-se com ele até um buraco no solo. Com um tipo de concha grande e comprida, enfiava no buraco, retirando porções de uma água escura, enchendo assim, a grande panela. Depositou-a no fogo. Pegou o saco menor, e derramou seu conteúdo em uma mesa ao lado do caldeirão. Em cima da mesa encontravam-se algumas pedras, objetos de madeira estranhos, alguns utilizados por estes pequenos que trazia para jantar. Com uma pedra lisa, circular e achatada, similar à uma faca, despedaçou alguns cogumelos, cortou algumas ervas diabólicas, estas com o devido cuidado para não tocá-las, pois seu contato pode infligir terríveis aflições. Retirou alguns sapos vermelhos, e espremeu-os no caldeirão. Jogou mais algumas especiarias, e com a concha estranha, mexeu a água, que a essa altura já exalava uma fumaça denunciando sua temperatura, assim como um odor, que, se para alguns traria até as tripas ao chão, para ele, trazia o êxtase máximo.

Saltitou alegremente até o saco maior, que permanecia imóvel há tempos. E na hora em que ia tocá-lo, uma voz se fez ouvir:
- Alto lá!
Sem entender nada, pois não sentiu o cheiro de ninguém chegando, virou-se à porta, para nada ver. Coçou a cabeça, aspirou profundamente, e nada... Voltou-se então novamente para o saco, e novamente a voz se fez:
- Eu disse pra parar! Seu Trolo estúpido!
Furioso com o insulto urrou tão alto, que a caverna tremeu, fazendo cair uma chuva de detritos das paredes e do teto. Tão forte fora o acesso de raiva, que o saco começava a se mover. Ao perceber que sua refeição despertara, deu uma longa passada, já com o braço direito realizando um movimento vertical circular, para cair sobre o saco e assim, decididamente, comer um purê. Porém, no momento em que sua mão estava acima da cabeça, golfou um pouco de seu sangue negro, ao mesmo tempo em que uma enorme pressão era exercida de dentro pra fora de sua caixa torácica. Quando olhou para baixo, viu sendo-se perfurado de dentro para fora, com uma lâmina formada por folhas, tão bem adornadas e dispostas umas às outras, que fascinado pela sua exuberância esqueceu-se da dor por alguns segundos. Mas o agressor não fora gentil, e rasgou-lhe a barriga por completo, saltando de dentro dela com agilidade, exalando a fumaça proveniente do ácido estomacal. O intrépido pequeno, de cabelos formados por longas folhas azuis, balançou-se então para retirar o excesso daquela gosma asquerosa, demonstrando não sentir dor alguma com o ácido no corpo, e disse, com um largo sorriso debochado no rosto:
- Isso, é pra você aprender a nunca - ao que sua feição transformou-se em algo assustador, enquanto elevava aquela espada ao ar, realizando um giro em torno de si mesmo - NUNCA MAIS comer um Zephyr!
Descendeu sobre ele um corte tão violento, e tão transtornado estava pelo ocorrido inesperado, que não reagiu. Rolou ao chão, vendo suas pernas tombarem para trás, agora separadas do tronco. Com a cabeça voltada ao solo, sentiu por um segundo uma alfinetada na cabeça, e de uma hora para outra, toda dor, fome, ânsia, raiva, ou qualquer inquietação que o assolava se fora.

Agora uma claridade surgia, diferente das outras antes incômodas, reconfortava-o plenamente. Fechou os olhos, e ouviu uma voz suave e quente dizer-lhe ao pé do ouvido:
- Agora, tens a chance de tentar de novo.

This entry was posted on outubro 21, 2008 at terça-feira, outubro 21, 2008 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

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