Relatório Sobre o Evento da Ilha Kork'ova  

Posted by andre

Arquipélago do Dromedário Cinza, Ilha Hab'oo - Quartel da Inteligência de Lúmina,



data indeterminada, ano 889L.






Esta mensagem deve ser entregue diretamente ao Grão General Zur da Guarda de Lúmina, sem intermediários.






Há semanas que a neblina havia tomado todo o arquipélago. Podíamos sentir nas nossas narinas a densidade das partículas que nos envolviam e não era um bom presságio. Sabíamos da presença de um dos membros mais poderosos da dita "irmandade" em uma das ilhas, mas não podíamos revelar nossa posição, nem constatar com a devida exatidão a localização do inimigo. Só uma certeza nos abatia, o frio. Posso afirmar com todas as forças que ainda restam a um guerreiro que viveu enúmeros cataclismas de tão enormes proporções - nunca senti tanto frio.

Nos dois primeiros dias, toda água da nossa instalação militar se viu congelada, a começar por pequenas poças e em seguida os baldes, os reservatórios até petrificar o rio que nos abastecia até sua nascente. Os recrutas que lá foram averiguar o caso e se possível trazer água para nós, viram que não só o lago da nascente estava congelado, mas após quebrar com picaretas o gelo da superfície e chegarem ao leito, se depararam com a magnitude da catástrofe que nos assolava. A água congelara até nos lençóis subterrâneos. Imediatamente mandei uma espedição de recrutas disfarçados para as ilhas adjacentes. Eu, como todo comandante precavido, temi pela vida de meus homens, sabendo que aquele estranho evento nada tinha de natural e se fosse o caso, teríamos de evacuar as imediações, pois a força extrema daquele evento seria demais para qualquer tropa do nosso nível. Ao fim do terceiro dia meus homens voltaram trazendo uma notícia emissora de tranqüilidade e ao mesmo tempo de um assombro imensurável. Na visita às ilhas que se aproximavam ao centro do arquipélago, meus soldados tiveram a visão mais aterrorizante de suas vidas até o determinado momento. Chegando no extremo norte da Ilha Lomb'oo, localizada imediatamente ao norte de Hab'oo, degladiando-se contra o frio que se extremava cada vez mais, chocou-se contra suas jovens pupilas o gélido horror. Toda a cidade de Lomb'oo estava coberta por uma camada espessa e cristalina que parecia de uma solidez indestrutível, do extremo de uma anca à outra. Os habitantes estavam paralizados nas ruas, como que pegos no meio de um dia comum. Uns parados em frente às vendas de comida, outros em cima de cavalos... todos congelados. Dos seis recrutas que foram e voltaram, um estava moribundo de hipotermia, outro catatônico, enquanto os outros quatro num balbucio trêmulo, tentavam, com frases inexatas, expressar o acontecido. Cheguei a ouvir de um deles - ... os olhos, era como se estivessem vivos - e notei a situação. Com certeza o foco daquele ataque não era o nosso grupo, mas algo de muito estranho estava acontecendo. Tive a certeza que o epicentro glacial seria a localização exata do vilão que procurávamos investigar. Mas estava de mãos atadas, no quarto dia, já acordávamos todos com pedrículas de gelo sob os olhos e tendo que nos banhar em termas improvisadas para que nossas mucosas não se solidificassem. Chegamos ao ponto de ter que selar o nosso edifício e atear fogo em tudo que podia ser feito de combustível para nos manter com vida.

No sexto dia, os humores já estavam abalados. Senti que meus homens fraquejavam e a maioria deles não saía de suas banheiras quentes. Como líder, não podia permitir o amolecimento de meus subordinados. A atitude que tomei, pode parecer um tanto quanto inconseqüente, mas ao meu ver se fez necessária. Com minhas próprias mãos, ergui na parte norte da ilha uma cabana de vigília que mantive aquecida precariamente. A chefe das cozinheiras me acompanhou. Apesar de sempre ter achado repugnante aquela volumosa fêmea Quoig, sua superabundância de tecido adiposo me foi muito útil e agradável naquela noite.

Foi pela manhã apenas que consegui fazer com que minhas pálpebras ganhassem peso. Sentado de frente para a costa nebulosa, via ao longe um enorme pernil de javali que encrustava seu caldo pelas entrancias das papilas e subia-me o aroma qua alcançava quase o topo da testa quando o alucinatório horror desabou sobre tudo e a todos a minha volta. Na profundidade do sono que me saboreava, senti um rumor quente vindo de muito longe, das minhas costas. A princípio, me aconcheguei no alento quente quase que macio daquele presságio suave de lareira. Foi quase no mesmo momento em que meus cabelos começaram a queimar, contorcendo-se pelas pontas, que minhas costas e a parte de trás das orelhas começaram a arder e ouvi o início de um estrondo aterrador. Num susto, ao me voltar para a direção do quartel contemplei durante menos de meio segundo, como a única testemunha de um apocalipse sem aviso, a potência gargântica da destruição máxima e implacável. As paredes do edifício voavam em pedaços, juntamente com os moveis, os pedaços de homens que sobravam no ar, acompanhados de uma chama que brotava como um ardente cogumelo de magma e que lançava o telhado do quartel para um ponto no céu onde se perdia de vista. Então eu tive a visão que me fez envelhecer, em menos de um quarto de segundo, a duração de um século. Vindo do centro da explosão, seguido por um rastro encandescente e faiscante, uma silhueta humanóide. Eu, que achava que o inferno já havia se resumido à minha frente num instante atrás, ao ver os olhos diabólicos de brasa
como lanternas caóticas da criatura de aerodinâmica bélica cortanto o ar em minha direção e uma ponta de lança bem a frente do rosto que cortava o ar gelado com a suavidade infernal de um feiche de luz, lancei-me para o chão, tentando ao máximo com o impacto enfiar-me sob o gelo num esforço indiscriminado de alcançar o mundo do outro lado. Foi quando senti a reverberação de uma gargalhada fumegante que passava por cima da minha cabeça, mais veloz que qualquer coisa presente no mundo. Logo levantei a cabeça, num susto como o que me voltara para o quartel acabado a menos de um décimo de segundo atrás, e olhei para o centro do arquipélago, mais precisamente a ilha Kork'ova, foco da trajetória do projétil insano, que sumiu por um instante por entre a nevoa quase sólida. E num sopro vermelho e laranja que subiu aos céus numa árvore de magma, de repente tudo era cinza e o tempo era como de lugar tropical. Do frio absoluto ao sol escaldante num segundo.


Não sei, prezado General, e sinceramente não tenho a certeza de querer saber a natureza desse evento que descrevi. O que sei é que jamais vi uma ilha inteira de magnitudes colossais como Kork'ova ser reduzida a nada como foi o acontecido. Nada General! Nada! Peço desculpas pela emotividade que expresso em meu relatório. Perdi todos os homens sob meu comando. Mando esta carta por via da cozinheira que voa de dirigível para Lúmina, com a tarefa de fazê-la chegar em mãos. Nesse exato momento em que encerro meu comunicado, pego a minha balsa e me retiro prontamente do serviço à guarda da maior cidade do mundo, parvo, envelhecido e atônito. Não terei condições de dar baixa oficialmente, peço como favor pela nossa antiga amizade. E por toda a honra que tive em combater ao lado dos bravos, peço que ache meios de pelo menos descobrir a natureza da catástrofe.

Muito obrigado,
Coronel Porco do Mar

This entry was posted on outubro 07, 2008 at terça-feira, outubro 07, 2008 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

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