Primeiro encontro  

Posted by Harijan D

O mestre disse ao discípulo:
- Quando perguntarem sobre tua origem, direis: "De todos os lugares, e de lugar algum", compreendes?
- Sim, mestre! - respondeu o discípulo.
O mestre virou-se e saiu, a porta do templo se fechou, o discípulo deu meia volta, olhou para a estrada, respirou fundo, e andou... Por dias e dias.

Muito tempo depois. No meio do que para muitos é o nada, e onde para poucos é o tudo. Numa casa simplória de telhado baixo, aconteceu o seguinte...

- De onde vens? - perguntou o camponês.
- De todos os lugares, e de lugar algum. - respondeu o monge, que de aparência, mal era distinguido como tal. Apenas alguns poucos reconheceriam, pelas suas vestes, pois de resto, era definitivamente um Qüoig jovem e de olhar vivas de topázio.
- Bem, se quiser comer, vai ter que trabalhar, sapinho.
- Não há problema nisso. - respondeu o garoto-anfíbio de pele verde e levemente manchada.

O camponês fechou a porta e gritou para o Qüoig dar a volta. Chegou do outro lado daquele casebre, situado em alguma fazenda, lar de um homem de bem, tranqüilo, parido ali, na mesma cama que dormira todos os dias de sua vida, bem como seus pais, que agora jaziam embaixo da mesma terra que outrora fora palco de suas aventuras pueris. O camponês saiu pela porta dos fundos, e de inchada na mão, disse:

- Aqui está - disse o camponês entregando a ferramenta ao Qüoig de roupas maltrapilhas - vamos, sem lerdeza, pois a caminhada é longa, e vai ficar tarde. Precisamos retirar todas as batatas-rebeldes que pudermos para a janta.
- Não há necessidade da inchada - disse sorrindo o sapo - pra isso tenho as mãos!
O camponês quase se estropiou de gargalhar ao ouvir isso, dizendo sem ar:
- Meu filho, de onde pensas que vem? Do Céu? Pois vai ver que essas batatas não são chamadas de rebeldes à toa.

Catou meia dúzia de imensas sacas vazias de pano, colocou-as no ombro, e com um gesto de cabeça, chamou o Qüoig para segui-lo, indo em direção a plantação. À distância era possível ver aquelas colinas, verdejantes e totalmente reservadas para o plantio, exceto pelas estradas e as poucas árvores, formando, em visão periférica, um lindo e tranquilo local para se viver. Andaram por uma terra demasiada fofa, descendo uma colina, longa e cansativa, que forçava os joelhos exaustivamente, porém para aquele camponês, já acostumado com a vida árdua, não era grande esforço. O Qüoig, estava sorrindo com a inchada apoiada no ombro, fazendo pouco caso daquele passeio e do trabalho que estava por vir. O camponês achava tudo muito engraçado daquele sapinho, e estava se preparando para as lições de "Não falei?", costumeiras de casos de desdéns parecidos.

Passaram por algumas outras plantações, ainda sem o devido tempo para a colheita. Desceram e subiram mais algumas colinas de plantações, até chegar a um campo sem aparente planta alguma, apenas terra, que, aparentemente igual às outras plantações, possuía um cercado. Porém, de conhecimento apenas dos habitantes da região, tal cercado era profundamente fincado àquela terra, tendo apenas um décimo de sua parte respirando o ar da superfície. O camponês jogou as sacas ao chão, e disse:
- Agora, você vai batendo a inchada na terra para afugentar as batatas, senão elas não aparecem, aí, vamos voltar de mãos vazias.
- Não! - disse o Qüoig - Ninguém ficará sem seu sustento, nem nós, nem outros. Eu posso muito bem tirar estas batatas por mim mesmo, melhor o senhor esperar.
- Meu filho não pense que isso é brincadeira, - respondeu o camponês, já um pouco nervoso, pois fora o próprio Qüoig quem buscara trabalho, e agora fazia pouco caso do mesmo - tente você então, retirar uma batata com as próprias mãos, como tanto se gaba.

O Qüoig monge, então, vestido com um manto grande de mangas largas, que outrora fora um bonito manto branco e preto com adornos dourados agora desbotados e rasgados, resolveu retirá-lo antes de começar o serviço braçal, mostrando seu físico atlético, até então escondido. Para aquele homem do campo, que notara desde o primeiro momento que aquele garoto possuía um aspecto diferente dos demais de sua raça, tinha agora a certeza da fibra do garoto viajante, pois este transmitia serenidade e confiança em cada movimento. O sapo, então, arqueou-se, com os braços esticados juntou as mãos com os dedos esticados na altura do rosto, formando uma espécie de triângulo com os dedões e indicadores, permanecendo assim por alguns instantes, olhando com tom sério por entre as mãos. O camponês não entendeu nada, até que o monge abriu bem os braços, dobrando os cotovelos na altura dos ombros, num gesto que, para o camponês, era o de render-se a um bandido na estrada. Mas não durou muito, realizou um golpe rápido com a faca da mão direita na palma da mão esquerda, apontado na direção do solo, o que fez com que o camponês soltasse uma arfada incrédula, incapaz de entender o que acontecia, bem como se aquilo serviria para alguma coisa ou não. De certo, estava mais propenso para as chacotas de uma tentativa vergonhosa daquele forasteiro, que desde que chegara, comportara-se como um fanfarrão que nada teme e que nada subestima.

Antes de continuar, é importante fazer um adendo sobre tais batatas em questão. Diferentes das batatas comuns, estas possuem suas raizes agarradas fortemente ao solo ao longo de sua vida. É dito que uma vez plantadas, ao atingirem certo tamanho, perambulam pela terra como se fossem peixes n'água. O fato era que estas batatas possuíam pernas e braços, e de alguma forma, não gostavam de serem puxadas para fora da terra. Em outras vidas, poderiam ter sido seres superiores, porém agora, reencarnados e rebaixados para viver na terra. De fato estas batatas gostam de seus afazeres de tubérculos leguminosos, alheios aos Homens, mas, como tudo que servira para manter estes seres ditos superiores, eram criadas para simples, porém deliciosamente extraordinárias refeições, justificando sua exorbitante demanda em outras terras longínquas. A cerca de imensa profundidade, servira justamente para evitar a fuga das batatas, pois sua imersão à terra possui certo limite de profundidade.

Mas, como era dito sobre o tal sapo monge e o camponês, que, sem nem ter tempo pra terminar de processar o que falaria, viu o monge golpeando a terra, ao que no movimento contrário, puxou uma daquelas plantas, com um só despretensioso movimento. O choque da surpresa fez sua maxilar sentir o frio do solo, enquanto seus olhos poderiam ser comparados às luas que vagavam o céu em noite de Olhos Celestes, de tão abertas que estavam. Permaneceu mudo, deixando cair uma linha fina de saliva da boca ainda escancarada, observando pasmo o trabalho que demoraria uma tarde inteira, sendo realizada por um Qüoig frenético de disposição só não tão surpreendente, quanto sua força e rapidez. Corria para lá e para cá, seguindo aquelas batatas que faziam jus ao nome, puxando com cada braço uma por vez, ao tempo que arremessava-as num monte formado pelas mesmas logo ao lado do camponês, que agora tentava recompor-se, inserindo-as tais com rapidez, como que não querendo fazer feio por ficar parado diante do jovem sapo monge. As batatas caíam no chão aos montes, e o camponês, já com dificuldade de capturá-las, ofegava pedidos mudos de socorro, enquanto uma ou outra mergulhava na terra, pois para tais batatas andarilhas do subsolo, fora dele, pareciam crianças a aprender como andar.



- Hahaha! - riu o sapo - Não é uma boa idéia ficar sem batatas, vou ajudá-lo!
Rapidamente, o monge correu com velocidade desigual sobre aquela terra macia, com a eficiência e a leveza de uma folha levada por um vento forte. Recapturava as batatas que buscavam a terra, enquanto soltava expressões do tipo "Quem muito cava pouco enxerga!" ou "Aquele que corre para casa, tropeça na estrada!".
Poucos daqueles legumes incomuns esconderam-se, mas o camponês estava feliz, pensava no quão satisfeito os Ministros dos Campos ficariam e recompensar-no-iam, pois uma vez com tantas batatas, esperava receber, na mesma proporção da aparente abundante colheita, gratificações de seu Lorde.

Naquela noite, comeram tantas batatas quanto puderam. O sapo dispensou o leitão sacrificado com tanto gosto pelo camponês, pois é contra sua conduta comer restos de outros animais, ficando apenas com os legumes, grãos e frutas, o que teria provocado mais uma piada do anfitrião, não fosse as indiscutíveis aptidões extraordinárias do peregrino moço. No final, o monge estava feliz por ver o homem falar tanto sobre como tudo aquilo era bom, e empolgado, resolveu ceder às perguntas pertinentes do simples homem em relação à origem de sua força. Falou então sobre o Monte Ajrun, e o Templo da Aurora Dourada. De sua chegada ao local quando criança, de seu treinamento, e de seu muito humano mestre, que havia ensinado-o tudo que sabia, de varrer o chão, até o segredo do caminho da Luz. Pediu, depois de tanto falatório, para que tudo que tivera escutado fosse mantido em segredo. O camponês, muito feliz por ouvir tantas histórias, consideradas aos seus arredores como lendas, concordou em manter tudo em segredo, resolvendo então fazer o que considerava certo, retribuir contando sobre si. Mas o sapo disse para não gastar energia à toa, pois já sabia de quase tudo. O camponês não entendeu, considerando-o por vez louco, então, o sapo comentou sobre as visitas sorrateiras que o camponês fazia à filha de seu compadre, enrubescendo o simples homem, mas o sapo riu bastante, coaxando por algumas vezes, dizendo-lhe que daquilo não havia mal algum, pois se era recíproco, não estava errado. A conversa se estendeu por muito tempo, até que cansados de tanta fartura e conversas fiadas concordaram em pernoitar.

No dia seguinte, o monge partiu, e na despedida, o camponês perguntou-lhe o nome. "Kwon" era como se chamava, retribuindo com um "Até logo ver, Cidanis". E sem olhar para trás, o monge se foi pela estrada que cruzava aquelas colinas verdejantes.

Naquela mesma tarde, o camponês não havia trabalhado. Tão excitado com o surgimento de notória pessoa em suas terras, foi até a casa de seu compadre, e não apenas levando a felicidade da moçoila tão comumente vista às escuras, fez questão de reunir todos daquela família que pouco via, unicamente para contar sobre a figura ilustre. Relatou todos os feitos do sujeito de capuz, o que despertou a curiosidade de tal modo nos seus ouvintes, que o monge, de súbito, ganhou poderes que nem mesmo ele fazia idéia, sendo, obviamente, exageros do narrador em sua empolgação descontrolada. Era óbvio que, devido aos relatos, muitos daquela casa desconfiaram da veracidade do ocorrido. Donnui, o menino mais novo, abrira um sorriso desde o momento que ouvira sobre o monge, pois estes já permeavam seus devaneios fantásticos em histórias contadas por sua mãe, esta, que ouvia atentamente, já condicionada a criar novas histórias para o filho antes do sono. A filha estava um pouco inquieta, pois o camponês preferiu, naquela tarde, primeiro contar o ocorrido, depois fazer-lhe companhia. O pai da família, companheiro de ofício, e compadre, ouvia tudo com o cenho vezes franzido, vezes contido, sem esboçar uma palavra sequer. Mas após tudo que havia dito, a família toda perguntou ao mesmo tempo, e em unis som, de onde era o tal monge. Vendo a face de expectativa dos seus vizinhos, não agüentou, contando sobre a conversa que tiveram durante a noite, em todos seus detalhes. O compadre ouviu tudo com atenção, enquanto acendia e fumava de um espesso, porém bem adornado cachimbo, hábito tradicional daquela região.

Despediu-se da família, mas resolvera voltar, no método matreiro de costume, quando a filha irrompera na sua saída pisando-lhe no pé, senão o camponês teria voltado para casa, satisfeito apenas com os relatos que não saiam de sua cabeça. Estes que só sumiram por um tempo, graças aos dotes, muito bem guarnecidos pelo trabalho campestre daquela bela humilde rapariga. Voltou para casa só no fim de noite, saindo pela janela do quarto da moça.

Acordando em casa, com o costumeiro desagradável frio além cobertores, retomou a consciência rapidamente quando percebeu que seu distúrbio do sono havia se dado pela chegada de alguém, que mantinha uma batida constante e seca na porta, quase que pondo-a abaixo. Espantou o frio rapidamente com um pulo da cama, pegando em seguida um casaco surrado, que permanecia na estante velha. Abriu a porta aos tropeços, dando de cara com uma superfície dura e ainda mais fria que aqueles ares, caindo em seguida no chão, levantando-se espalhafatosamente percebendo que a tal superfície era de fato o peitoral de uma armadura escura, unicamente entalhada nas forjas de um castelo imenso e muitíssimo distante dali. A cada passada, o chão do casebre estremecia, acelerando o pulso do pobre camponês, bem como a possibilidade do humilde lar vir abaixo. O sujeito dentro da armadura era largo, e seu elmo, fechado, não permitia ver feições do seu rosto, apenas a fumaça resultante da respiração naquele lugar frio. Do topo elmo, uma plumagem rubra erguia-se, tombando para trás. As ombreiras eram grandes e com detalhes pontiagudos, bem como outros aspectos do restante que compunham, cogitavam, à vista, ser a veste de batalha em questão, injuriosa em contatos bruscos. Da espada que lhe pendia às costas carente de bainha, pouco o camponês pode ver, senão relances de sua lâmina negra, larga e cumprida, bem como um cabo, de jóia e guarda douradas. Levantando a viseira do elmo, revelando uma face barbuda e de poucos amigos, olhou para o pobre camponês, que ao lado daquele ostensivo poderio de batalha, fazia-o sentir-se uma pequena minhoca terrestre. Foi quando o cavaleiro disse:
- Traga!
Ao que, o camponês, imediatamente dirigiu-se até a dispensa de sua casa, de fato já esperando receber uma mínima palavra que alegrasse seu diminuto ego de lavrador. Mas parecia que aquelas batatas não estavam tão dispostas a isso, pois na demasia de sua visita à casa de seu compadre, pareceu-lhe que alguém arrombara a porta dos fundos, e pelo menos três quartos daquelas batatas-rebeldes haviam simplesmente sumido. Cogitou a possibilidade de aquele monge ser na verdade um ladrão de qualidades excepcionais, gerando raiva, porém no seu âmago, mais medo, pois o sapo não era um tal qualquer. Olhou para os lados, e sem saber o que fazer, fechou a porta, e ao virar-se para retornar, deparou com o cavaleiro já se servindo do chá que havia perto do fogareiro antes de dormir, este, percebendo o camponês de mãos vazias, levantou-se produzindo um sonoro tilintar de metais chocando-se, indagando em seguida:
- Onde está?
- É que... - gaguejou o pobre homem - bem... Acredito eu, meu senhor...
- Muito bem, - interrompeu o cavaleiro - vou ter que derrubar sua casa para achar o salafrário...
Mal terminando seus dizeres, o camponês pôs-se de joelhos a prosternar, suplicando para que não o fizesse, repetindo inúmeras vezes que, dali, não chegara nem abrigara ladrão algum, e se cometeu algum pecado, foi o de não ter guardado, de forma adequada, sua tão sofrida e farta colheita semanal, omitindo sua verdadeira procedência.
O cavaleiro então, disse-lhe:
- Caso não saiba, há um bandido percorrendo as vastas terras de nosso senhor. Trate de ficar em alerta, e use isto caso encontre-o.
Tirando de dentro de algum bolso, situado em algum local na roupa apertada pela grotesca armadura, que com muito esforço adentrava a mão para tirar, deu para o camponês uma espécie de bola de papel, adornada em cada milímetro de sua circunferência, com uma espécie de corda saltando de seu interior. Em sua curiosidade fatídica, o simples lavrador tratou de começar a, assim que segurada a esfera, puxar tal corda, mas antes de realizar a façanha ignóbil, o cavaleiro deu uma tapa em sua mão, com tanta força que fê-lo largar a bola no ato.
- Eu disse para puxar a corda? - rosnou o cavaleiro, inclinando-se ostensivamente o cavaleiro, quase encostando sua face na do camponês, que por sua vez, fechava os olhos com força, buscando conforto para a dor em seus braços. - Se não sabes usar, pergunta-me, ao invés de remexer como um tolo.
- Sim senhor... - mesurou o camponês.
- Trate de ir à colheita, pois não vim aqui como mensageiro, e sim para cumprir minhas obrigações de Ministro. Traga-me rápido a colheita semanal.
- Er... - começou o camponês, sem olhar diretamente para os olhos do cavaleiro, como de costume - Minhas batatas fugiram... Todas elas.
Em claro desassossego, e beirando a impaciência violenta, o cavaleiro respirou fundo, contendo-se de tal modo, que apenas sua aura agressiva fez o camponês mijar-se. Sem falar uma palavra, virou-se para a parede mais próxima da casa, e trespassando-a como papel, seguiu colina a baixo, deixando o camponês urinado e impotente, à beira do suicídio por sua incompetência, no entanto, feliz pela clemência, nem um pouco comum aqueles, porém demonstrada por este cavaleiro.

This entry was posted on novembro 19, 2008 at quarta-feira, novembro 19, 2008 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

2 comentários

!muito bom,
adorei...

19 de novembro de 2008 às 15:09

quero ler a continuação....

1 de dezembro de 2008 às 02:54

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